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Em sua despedida, Roger Waters traz mescla perfeita de música e de consciência de classe

Em sua despedida, Roger Waters traz mescla perfeita de música e de consciência de classe

30 de outubro de 2023


Crédito das fotos: Marcos Hermes

No último sábado de outubro, no Rio de Janeiro, fomos agraciados com a última apresentação de Roger Waters nestas terras antes de sua aposentadoria. Ele apareceu em uma noite quente que fez a antiga capital federal parecer uma sucursal do inferno durante sua turnê “This is not a Drill”. Waters nos brindou com grandes clássicos do Pink Floyd. Infelizmente, mais uma vez, o show foi marcado por uma presença tímida da plateia. Isso foi notável, especialmente considerando o local escolhido: o estádio Nilton Santos, comumente chamado de Engenhão, apesar da preferência da torcida do Botafogo por esse apelido. Mas, paciência, afinal, o botafoguense também chama a Avenida Dom Hélder Câmara de Suburbana e o Shopping Boulevard de Iguatemi, então é justo que chamemos o estádio pelo apelido, o que não é pejorativo.

O repertório do show não surpreendeu ninguém, pois ele vem se apresentando desde julho do ano passado, quando a turnê começou nos Estados Unidos. Foram 24 canções, a maioria esmagadora do Pink Floyd. Portanto, o sucesso da apresentação já era garantido. Claro que o lado militante de Roger Waters não poderia ficar de fora, e durante todo o tempo, ele lembrou o quão difícil é viver em um mundo repleto de conflitos, enfatizando que o belicismo nunca foi a solução para a paz. Ao contrário de 2018, o público pareceu entender que a arte também é uma forma de expressar descontentamento com os problemas sociais.

Quando chegamos à sala de imprensa, fomos informados de que o show atrasaria 20 minutos. Às 21h, os sons começaram a sair dos PAs, e o público, que, obviamente, ainda não sabia do atraso, ficou agitado. Às 21h05, um aviso no palco informou a todos sobre o atraso. A expectativa era que não houvesse a mesma queda de energia que ocorreu no último evento no estádio, forçando a partida entre Botafogo e Athlético (PR) a terminar no dia seguinte sob luz natural. Felizmente, tudo correu bem, e Roger Waters pôde se despedir dos palcos fluminenses.

Às 21h20, com a mensagem já conhecida no telão pedindo que todos guardassem seus celulares (obviamente ignorada por todos, incluindo eu, que escrevo o que vejo e já saio com o texto 90% pronto para você, caro leitor), Waters subiu ovacionado e tocou “Comfortably Numb”, que serviu como uma introdução para o grande clássico do Pink Floyd, “Another Brick in the Wall”, nas partes 2 e 3, com um som impecável que perdurou até o final. Os instrumentos estavam perfeitamente audíveis, proporcionando uma experiência magnífica.

A produção do show foi espetacular. Durante as músicas, quatro enormes telões exibiam, além dos músicos tocando, cenas de violência e citações de locais onde ocorrem todo tipo de violência e covardia contra minorias, com mensagens em inglês, português e espanhol. Foi necessário chegar ao Século XXI para que alguns de nós tivéssemos consciência do que o Pink Floyd nos ensinou durante décadas por meio de suas letras. Waters enumerou alguns governantes, classificando-os como “criminosos de guerra”, incluindo os três últimos presidentes dos Estados Unidos: Barack Obama, Donald Trump e Joe Biden, além de Ronald Reagan. Para evitar dúvidas, ele pediu paz na Palestina, embora não tenha mencionado o grupo Hamas.

Como músico versátil, Waters se alternou entre cantar, tocar baixo, guitarra e piano, como em “The Bar”. Antes de “Have a Cigar”, ele prometeu Rock N’ Roll, que foi entregue com um toque de peso. Apesar da ausência de David Gilmour, Waters estava cercado de habilidosos instrumentistas. Vale observar que ele prestou homenagens a Syd Barrett, mas não mencionou seu atual desafeto, com quem trocou farpas pela imprensa recentemente.

Durante “Wish You Were Here”, cantada em uníssono, Waters dedicou a música a Syd Barrett e contou como surgiu a ideia de montar uma banda após um show. Essa banda era o Pink Floyd, e não restaram dúvidas de que a música foi dedicada a Syd, o que foi aplaudido por todos os presentes. Durante “Sheep”, as animações nos telões foram incríveis, com figuras que pareciam mover-se pelas telas. O primeiro set se encerrou com um show de efeitos especiais, incluindo uma ovelha “passeando” ao redor do Engenhão, e Waters pedindo a todos que resistissem ao capitalismo, ao fascismo e às guerras.

O show poderia ter terminado após o primeiro set e já teria valido a pena. No entanto, ainda havia mais. Após uma trégua de 20 minutos, Waters voltou em uma cadeira de rodas e com uma camisa de força para cantar “In the Flesh”. “Run Like Hell” foi dedicada aos “loucos” na plateia. Durante “Déjà Vu”, mensagens em defesa dos direitos humanos e povos historicamente oprimidos, como negros, trans e indígenas, surgiram nos telões. Dessa vez, os eleitores do ex-presidente não causaram problemas, optando por ficar em casa, o que pareceu uma atitude mais sensata.

“Money” não foi cantada por Waters, mas sim pelo guitarrista Jonathan Wilson, que a interpretou com maestria. A estrela da noite demonstrou sua destreza nos riffs psicodélicos que seu baixo traz nesta canção.

Roger estava visivelmente feliz no palco e expressou sua satisfação, recebendo aplausos calorosos em resposta. Ele também enviou uma mensagem ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Aqueles que estavam presentes, embora em menor número do que em 2018, certamente entenderam o legado do Pink Floyd. Waters mencionou a possibilidade de retornar ao Brasil, mas não para fazer mais shows, e agradeceu a todos. Com o segundo set mais longo e talvez menos badalado, o público carioca teve a oportunidade de se despedir do “Rogerinho das Águas”.

Talvez o único ponto negativo do show não tenha sido a apresentação em si, mas a presença modesta do público, como mencionado no início. Houve clarões nas arquibancadas do estádio, sugerindo que esse público poderia caber facilmente em outros locais, como a Jeunesse Arena ou o Vivo Rio. No entanto, a estrutura do palco exigia grandes arenas. Além disso, havia outros shows no mesmo dia, com o Machine Head se apresentando na Lapa, e no dia seguinte, L7 e Black Flag também realizariam shows na cidade. O final do mês também pode ter contribuído, já que muitas pessoas ainda não tinham recebido seus salários. Aqueles que compareceram, no entanto, retornaram para casa com uma experiência inesquecível. Roger Waters mostrou o verdadeiro significado da palavra “show”. Aqueles que não estiveram lá perderam uma grande apresentação. E, na volta para casa, um vendedor de cerveja no trem, depois da meia-noite, com o típico bom humor carioca, bradava: “Caiu o raio, rai ni quem”… Coisas que só o Rio de Janeiro proporciona.

Setlist: 

Set 1:
Comfortably Numb
The Happiest Days of Our Lives
Another Brick in the Wall, Part 2
Another Brick in the Wall, Part 3
The Powers That Be
The Bravery of Being Out of Range
The Bar
Have a Cigar
Wish You Were Here
Shine On You Crazy Diamond (Parts VI-IX)
Sheep

Set 2:
In the Flesh
Run Like Hell
Déjà Vu
Déjà Vu (Reprise)
Is This the Life We Really Want?
Money
Us and Them
Any Colour You Like
Brain Damage
Eclipse
Two Suns in the Sunset
The Bar (Reprise)
Outside the Wall

Galeria do show