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Massarifest: Retrato + Oruã, Bufo Borealis, Violeta de Outono , APTBS e a celebração do caos

Massarifest: Retrato + Oruã, Bufo Borealis, Violeta de Outono , APTBS e a celebração do caos

15 de setembro de 2025


No domingo, 14 de setembro, em pleno inverno, São Paulo foi agraciada com um fim de tarde especial no Fabrique Club, na Barra Funda, zona norte da cidade. Um público seleto, formado por pessoas interessantes e apaixonadas por música, se reuniu para celebrar as infinitas configurações que só um som barulhento e ruidoso pode oferecer. O encontro tinha um motivo mais do que especial: homenagear a vida e a obra do Reverendo Fabio Massari, um dos grandes nomes da cultura pop brasileira, formador de opinião e responsável por apresentar gerações inteiras ao universo da boa música. Um acontecimento à altura de sua importância.

Nesse cenário, a 2ª edição do Massarifest ganhou forma e energia, reunindo um time de peso: Retrato + Oruã, Bufo Borealis, Violeta de Outono e A Place To Bury Strangers. Cada apresentação trouxe sua própria dose de genialidade e relevância, marcando não apenas este que escreve, mas também todos os que tiveram o privilégio de estar presentes, transformando a casa em um espaço de atmosfera íntima e acolhedora.

Além dos shows, quem chegou cedo pôde explorar com calma as bancas de merchandising das bandas, editoras independentes, o projeto social Central Panelaço (idealizado por João Gordo e Vivi Torrico) e o coletivo SHN, com suas gravuras e adesivos incríveis. E, claro, ainda havia a oportunidade de cumprimentar o próprio Massari e outras personalidades da cena underground.

 

RETRATO + ORUÃ

A festa começou pontualmente às 17h com a parceria “lisérgica” entre os amigos RETRATO, formado por Ana Zumpano (bateria e vocais), Beeau Gomez (guitarra e vocais), Elisa Moreira (guitarra), Victor José (baixo) e John Di Lallo (sintetizadores e efeitos), e ORUÃ, integrado por Lê Almeida (guitarra e voz), Bigú Medine (baixo), João Casaes (sintetizadores) e novamente Ana Zumpano (bateria).

Entre camadas de ruídos, projeções intensamente criativas e muita originalidade, os dois grupos se fundiram em uma performance potente, em altíssimo nível, carregada pelo inconfundível selo de qualidade Lê Almeida.

E já que o assunto é Lê Almeida, vale destacar o quanto é grandioso tê-lo entre nós. Uma verdadeira entidade do underground brasileiro, que há anos se dedica a lapidar enigmas sonoros e visuais para transformá-los em experiências de extremo bom gosto e autenticidade. Como artista plástico e músico, ele uniu o Oruã ao Retrato, somando as duas linguagens que domina com maestria. O resultado foi um espetáculo hipnótico, que envolveu a plateia de corpo e alma nessa viagem sonora e visual. Um absurdo de tão bom!

Bem, voltando ao espetáculo que os amigos apresentaram, tivemos o privilégio de ouvir algumas faixas inéditas que farão parte do próximo álbum do Retrato, além de “Interlúdio”, que, pelo menos para mim, funciona como uma prece que abre o portal para o fim do mundo. Já o Oruã trouxe, entre outras, “Sem Benção / Sem Crença”, que manteve a mesma energia da faixa de abertura do show e conduziu todos a um universo de fritura apocalíptica, sem passagem de volta. Algo simplesmente inexplicável!

SETLIST: RETRATO + ORUÃ

Interlúdio (Retrato + Oruã)
Sua Luz (Retrato)
Espiritualmente Aceso (Oruã + Retrato)
Rio de Sombras (Retrato)
Capoeira (Oruã)
Siga (Retrato)
Sem Benção / Sem Crença (Oruã)

BUFO BOREALIS

Exatamente às 18h15, o Bufo Borealis subiu ao palco e mergulhou o público no seu universo de “jazz funk revirado”, uma abertura cortante para uma noite que já fervia de expectativa. Tendo à frente Juninho Sangiorgio (Ratos de Porão) no baixo e Rodrigo Saldanha (Amigos Invisíveis) na bateria, o Bufo Borealis desafia padrões e inventa caminhos. Entrelaça o improviso do jazz, a crueza do punk e as estruturas fragmentadas da música quebrada, criando uma identidade que se recusa a ser rotulada.

No espetáculo de ontem, ficou evidente o respeito que têm por seus antecessores: em diagnósticos sonoros, ecos de Massari, Frank Zappa e Hermeto Paschoal reverberam, não como cópias, mas como conjunções de espírito livre, imprevisível. A execução dos músicos foi ao mesmo tempo elegante e visceral, equilibrando desestrutura e pulso: o groove se abre para dissonâncias, riffs despedaçam expectativas, silêncios esfriam o ambiente antes que a tempestade sonora retome com toda força.

Se o Bufo Borealis visita o caos do som, ele o faz de maneira guiada, quase cirúrgica, onde cada solo e cada curva dinâmica soam como um convite à imersão, como se o público se tornasse parte de algo maior, selvagem e abstrato.

SETLIST: Bufo Borealis

1.      Guerra

2.      Ponkan

3.      Divino

4.      Decimo Piso

5.      Urca

 

VIOLETA DE OUTONO

Uma das bandas mais relevantes do post-punk e do rock nacional como um todo, o Violeta de Outono, em sua formação clássica com Angelo Pastorello (baixo), Cláudio Souza (bateria) e Fábio Golfetti (guitarra e voz), subiu ao palco às 19h30 no Massarifest. Sob os olhares de Hermeto Paschoal, que surgia projetado no telão de fundo, o grupo abriu o show com seu maior clássico, “Dia Eterno”, para alegria dos fãs na faixa dos 40/50+, que compunham a maioria do público.

A sequência seguiu com mais dois hinos do álbum homônimo de 1987: “Outono” e “Declínio de Maio”, além de uma potente releitura de “Tomorrow Never Knows”. Em dado momento do espetáculo, Fábio Golfetti agradeceu aos presentes e lembrou que Fábio Massari foi decisivo para a continuidade da banda nos anos 1990, abrindo portas para que o Violeta pudesse se apresentar em diversas ocasiões.

A apresentação fluiu lindamente, repleta de clássicos. No início, a voz de Fábio soava um pouco abafada, detalhe rapidamente corrigido. Já na metade do show, o volume atingiu níveis altíssimos (mesmo!), mas logo foi ajustado para que tudo soasse límpido e equilibrado.

No fim, o Violeta de Outono reafirmou por que ocupa um lugar singular na história da música brasileira. Entre projeções, clássicos e a devoção de um público que atravessou décadas ao lado da banda, o show no Massarifest soou como uma celebração da própria resistência artística, deixando claro que sua obra continua viva e muito necessária.

 

A PLACE TO BURY STRANGERS

O show do A Place to Bury Strangers ontem no Massarifest foi uma verdadeira descarga elétrica na mente. Definitivamente um dos espetáculos mais “depravados” (no melhor dos sentidos) que já se viu por aqui. A banda mais barulhenta de Nova York não veio para agradar ou ser compreendida, veio para destruir qualquer noção pré-fabricada de música. O noise rock deles, misturado com post-punk, shoegaze e ruídos que desafiam até a métrica dos arranjos, extrapola o que se entende por gênero. A definição do que rolou no Fabrique Club fica por conta da sua imaginação, caro leitor, porque o que foi visto ali escapa de qualquer explicação convencional. Oliver Ackermann (guitarra e vocal), John Fedowitz (baixo e vocal) e Sandra Fedowitz (bateria) aterrissaram no Brasil com uma missão: perturbar mentes acomodadas e nos lembrar de que música, de verdade, também pode ser um belo caos.

Mas antes do manifesto sonoro tomar forma, quem chegou cedo, por volta das 16h, teve a rara oportunidade de conversar com a banda, que montou sua própria banca para vender os lendários pedais de efeito criados por Oliver. Colecionadores garantiram relíquias, autógrafos e fotos para guardar para sempre. Mas foi às 20h45 que o massacre começou de fato, quando o trio, sem roadies ou frescuras, plugou os cabos, afinou os instrumentos e deu o start com a insana “Dragged in a Hole”, do álbum “See Through You” (2022). Bastaram poucos segundos para a bateria indomável de Sandra Fedowitz arrancar expressões de espanto do público, que mal teve tempo de respirar antes da pancada seguinte: “We’ve Come So Far”, do explosivo “Transfixiation” (2015). Ali, quem estava presente percebeu: assistir ao APTBS não é ouvir uma banda, é sobreviver a ela.

Do recém-lançado Synthesizer (2024), já considerado por muitos como um dos grandes marcos da discografia da banda, veio um dos momentos mais impactantes da noite: “Bad Idea”. A faixa, que carrega uma construção tortuosa e cheia de tensão, lembrando em muito os momentos mais abrasivos do Sonic Youth, foi interrompida de forma abrupta e nos levou a um delírio coletivo. No ápice da música, a banda simplesmente desceu do palco e foi para o fundo da casa, arrastando com ela o público para um ritual de improviso caótico. Foi um daqueles momentos em que se percebe que o show não está mais sendo apenas assistido, ele está sendo vivido em outra dimensão. Sensacional!

De volta ao palco, após esses minutos de êxtase, veio o golpe certeiro: “Never Coming Back”, do disco “Pinned” (2018), talvez a mais esperada por mim, e que, honestamente, já teria encerrado a noite com um sorriso estampado no rosto. Mas o destino foi generoso, e ainda tivemos mais duas pedradas: “You Got Me” e a devastadora “Have You Ever Been in Love”, ambas de “Synthesizer”.

 

SETLIST: A Place to Bury Strangers

1.      Dragged in a Hole

2.      We’ve Come So Far

3.      Hold On Tight

4.      Deadbeat

5.      Can’t Leave Anymore

6.      Bad Idea

7.      Improvisation (Drum, bass and distortion between the crowd)

8.      Never Coming Back

9.      You Got Me

10.  I Lived My Life to Stand in the Shadow of Your Heart

11.  Have You Ever Been in Love

Com o público totalmente entregue, olhos e ouvidos em transe, Oliver Ackermann mostrou por que é um dos performers mais intensos da música atual: destruiu a guitarra, girou o refletor como quem invoca uma tempestade, rolou no chão, quebrou tudo, inclusive expectativas. O APTBS não apenas faz música; eles detonam realidades. E nesse processo, fazem com que cada um transforme o caos sonoro em uma experiência íntima, pessoal e profundamente perturbadora. Porque no fim das contas, A Place to Bury Strangers é isso: a trilha sonora do fim do mundo, ou talvez, do recomeço.

Galeria do show