Foi plantando bananeira que Flea entrou no palco para a terceira perna da turnê brasileira de “Unlimited Love”, no Estádio do Morumbi, em uma noite meio fria de 10 de novembro, que ficou quente e terminou cheia de corações acalentados com um desfile de canções que, pode ter até quem reclame, mas foram executadas na medida perfeita para aperfeiçoar qualquer sexta-feira. Às 21h06, o baixista entrou ao lado de Chad Smith, o baterista, e do icônico guitarrista John Frusciante, que retorna ao Brasil com a banda após 21 anos, sendo que, destes, ficou longe do quarteto entre 2009 e 2019. Por último, o vocalista Anthony Kiedis não fez questão de cumprimentar ninguém e iniciou “Can’t Stop”, do álbum “By the Way”, de 2002. Com um hit desses, difícil pensar em uma saudação mais efusiva para as dezenas de milhares de presentes.
Um show do Red Hot Chili Peppers por si só é algo marcante. São cerca de 40 anos de muita história, de um início mais no funk rock, caindo pro rock alternativo, mas que soube se colocar no tempo e se tornar um dos grupos mais originais da história da música pop – isso falando dos que trazem apenas guitarra, baixo e bateria à equação e possivelmente por causa da enorme criatividade de todos os músicos que por ele passaram desde os seus primórdios, em 1983. Porém, a união de Kiedis e Flea com Chad e Frusciante é seguramente a formação que mais encantou o planeta, e um dos motivos principais para se estar lá naquela noite era a volta do querido “Frucha” nas seis cordas.
Se esta falta foi para alguns fãs algo a se lamentar, apesar de dois bons álbuns saírem como resultado e justamente com um discípulo de John na posição, Josh Klinghoffer, este por muitas vezes foi taxado como menos técnico e até com menor simpatia pela opinião grossa.
Estava ali então o Dream Team que marcou pelo menos duas ou até três gerações de amantes da música. Com finalmente um “boa noite” aos presentes, Kiedis agradeceu a efusividade do público ao primeiro hit ostentando uma bermuda preta com símbolo da revista Playboy feito com pedras brilhantes na perna esquerda, a mesma que trazia também uma bota ortopédica já comum nos últimos tempos, já que ele tem sofrido algumas lesões no membro. Seja o que for, não atrapalha a famosa energia que o vocalista fez mais uma vez questão de mostrar na segunda canção, “The Zephyr Song”, claramente amada pela maioria dos presentes. Com muitos pulos e algumas pequenas correrias pelo palco, e com seus 61 anos recém-completados no último dia 1º, o megassaudável jovem senhor mostrou tudo o que tinha para a noite, que estava só começando.
Daí, a primeira das muitas confabulações entre Flea e John trouxeram uma jam deliciosa em que Chad e AK ficaram nas sombras, pois a luz é demandada apenas para a fantástica dupla das cordas, que as tocam como se fosse tudo planejado para qualquer desavisado. O que seguiu foi “Here Ever After”, do recente álbum homônimo à turnê que já passou, em solo brasileiro, por Rio de Janeiro e Brasília e ainda vai para Curitiba e Porto Alegre.
Alguns poderiam pensar que, depois dessa, tocariam a quase famosa “Throw Away Your Television”, pois algumas notas de outra reunião Flea/John davam a entender que seria isso. Mas foi outra famosa dos setlists do conjunto que ganhou vida. O cover “Havana Affair”, dos Ramones, não veio com o famoso aviso do baixista de que essa versão é menos elétrica que a original. Duvido que alguém por lá não soubesse disso, pois pelo menos o seu coro foi cantado no ritmo certo para quem a conhece performada por aqueles ali que estavam no palco.
É quase desnecessário, mas é que cabe o destaque para Flea nessa primeira parte, pois seu instrumento foi o que levou a apresentação quase como um maestro com sua batuta. Bastão este que poderia trazer qualquer mensagem escrita, mas que mostrava ali um adesivo com os dizeres “Support your local freak”, que numa tradução simples seria “Apoie o seu doido local”. Sublime.
A sétima canção foi “Eddie”, do “Return of the Dream Canteen”, também de 2022. Muito bem recebida, esta é uma homenagem ao guitarrista Eddie Van Halen, do icônico conjunto que leva o seu sobrenome e que faleceu em outubro de 2020. É também um tributo ao próprio tempo que o músico neerlandês viveu seu ápice, 1983, ano já citado aqui como o seminal do Red Hot Chili Peppers. A canção fala também sobre isso, uma ode ao tempo em que eles cresceram e os influenciou, como dignos produtos do meio. Um meio efervescente após a lisergia dos 1970 e a tecnicidade da década seguinte, a qual todos aqui citados são dignos e imortais representantes. Frusciante faz nessa execução um dos solos mais longos da discografia de 13 volumes destes estadunidenses. Clara homenagem a Eddie e seu grupo que revolucionou a música pesada.
Falando em estado lisérgico, a grata surpresa do setlist foi “Parallel Universe”, a primeira da noite que faz parte do poderoso “Californication”, de 1999. Com seus riffs pesados e linha de baixo acurada e imponente, houveram aqueles que se derreteram gritando parte do coro “I’m a California king!” e seu solo de guitarra derradeiro.
Nos últimos dois parágrafos é comentado sobre solos de guitarra, mas para quem acompanha a banda, e principalmente John Frusciante nas apresentações ao vivo, é possível dizer que nunca há duas representações iguais das canções quando estes quatro se reúnem em qualquer palco. A criatividade artística se exaspera de tal forma que é quase natural as coisas saírem diferentes, mas com coesão sem igual, dando para aquele momento o que geralmente a vida dá e várias vezes não se é aproveitado: experiências únicas e às vezes surpreendentes. Esta basicamente é a premissa de um show do Red Hot Chili Peppers: não tenha expectativa de ouvir exatamente o que você aprendeu do álbum, pois o ao vivo é outra coisa.
Para dar uma segurada na galera, o lado B “Soul to Squeeze”, que é da época pós-“Blood Sugar Sex Magik”, de 1991, exigiu um pouco mais da voz de Kiedis, que começava a mostrar certa dificuldade para chegar nas notas. Nada que estragasse a apresentação e nem que o limitasse de finalmente tirar a camiseta vermelha tramada, que pareciam furos, e trouxesse, com a ação, mais uma representação do que o Red Hot sempre foi. É sabido que eles não fazem mais turnês apenas com meias nos órgãos genitais, como fizeram em seus primórdios, mas a textura da memória está nesse tipo de atitude.
Uma jamzinha com “London Calling”, de The Clash, normalmente dá o tom para “Right on Time”, rápida e potente canção que age como uma ferramenta para unir ainda mais eles ali, os do palco, com o público. Deu certo, como sempre, e foi dada a vez para a aplaudidíssima “Tippa My Tongue” e depois ao hit de 2006, “Tell Me Baby”, que muita gente quer cantar, mas acabam deixando só para AK e sua rápida verborragia de ponta de língua para contar qual é a história.
Se alguém lendo esse texto já viu a gravação de “Live at Slane Castle”, de 2003, na qual o Red Hot estava em um de seus auges, seguramente a canção “Don’t Forget Me” é lembrada. Na ocasião, sua execução já foi tida como um show à parte, com uma performance apaixonada e assustadoramente psicodélica, principalmente por parte de Frusciante. Voltando ao palco paulista, tivemos uma digna representação daquela ensolarada tarde irlandesa, o que foi um presente aos amantes da discografia pepperiana que não se atêm apenas aos hits radiofônicos e apreciam pérolas como essa do álbum “By the Way”.
Mas claro que eles também dão valor a todo e qualquer fã, e talvez pra confirmar isso o megahit “Californication” veio na sequência após mais uma trama deliciosamente malvada de baixo e guitarra que ora mostrava, ora escondia as notas do estrondoso sucesso do finalzinho do século 20. Na noite, o ritmo desta ácida crítica à cultura hollywoodiana foi meio que um tom menor do gravado em estúdio, meio que abaixando a poeira e dando um fôlego para quem precisava. Muitos na plateia também não eram mais jovens e talvez agradeceram a gentileza.
A nova “Black Summer” então veio com muita gente acompanhando as letras lado a lado, mostrando que, no quesito ainda-saber-fazer-boas-canções, o Red Hot ainda tem muito a trazer. É aí que veio mais um hit do começo da nossa nova era, “By the Way”, essa sim cantada por 99% dos presentes – dado este confirmável por qualquer um que lá esteve. A ovação após sua última estrofe foi quase ensurdecedora.
Espaço perfeito para uma pequena pausa de três minutos. Porém, quem viu o setlist dos shows do Rio e de Brasília teve tempo para pequenas elucubrações sobre qual canção viria a seguir. Houve reclamação de gente do Planalto Central que ouviu a linda “I Could Have Lied” em vez da melódica e tétrica “Under the Bridge”, reverenciada não só por cariocas, mas por gente dotada de qualquer gosto musical há 32 anos. Para deleite dos mais tradicionais, a última citada foi a escolhida, e muitos ali puderam ouvir, pela primeira vez, John Frusciante usando sua guitarra para contar uma história da qual ele inicialmente nem sabia, mas foi o objeto de sua inspiração. Quando Kiedis a escreveu, foi a falta do então jovem companheiro de banda, que começava a dar seus primeiros passos no showbiz e mostrava não precisar mais do tutor, que trouxe a melancolia necessária para o cantor apostar na cidade de Los Angeles como sua única salvadora e companheira. Claro, essa é uma encurtação da história contada por AK em sua autobiografia, “Scar Tissue”, que também dá nome a um hit dos californianos e só foi citada aqui para alentar a quem sentiu sua falta no setlist.
Todo mundo já sabia que o espetáculo estava acabando. Os Chili Peppers dificilmente chegam perto de duas horas de apresentação, e nesta ocasião a regra não foi quebrada. A eterna “Give It Away” foi a escolhida para encerrar uma apresentação firme de cerca de 1h40 e que mostrou que a sinergia destes quatro integrantes é raramente alcançada por outros conjuntos na história, por mais forte que essa afirmação pareça.
Setlist
Intro Jam
Can’t Stop
The Zephyr Song
Snow (Hey Oh)
Here Ever After
Havana Affair
Eddie
Parallel Universe
Soul to Squeeze
Right on Time
Tippa My Tongue
Tell Me Baby
Terrapin
Californication
Black Summer
By the Way
Bis:
Under the Bridge
Give It Away
Galeria do show
- Show – Red Hot Chili Peppers em SP 10/11/2023 Crédito: MRossi
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