Crédito das fotos: Marcelo Catacci/Metal no Papel

Em uma quinta-feira aparentemente comum, 2 de outubro, a Burning House transformou-se no epicentro de uma tempestade sônica que poucos privilegiados testemunharam. O que deveria ser apenas mais uma noite na agenda paulistana revelou-se uma das celebrações mais viscerais e autênticas ao metal extremo já presenciadas em solo brasileiro. Três bandas, três universos distintos, uma única missão: incendiar as estruturas do convencional.

A noite iniciou-se com a precisão cirúrgica do Chaos Synopsis, quarteto brasileiro que há anos lapida sua identidade no underground nacional. Jairo Vaz, comandando baixo e vocais com a autoridade de quem conhece cada víscera do metal extremo, conduziu uma performance que transcendeu a mera função de “banda de abertura”.

Acompanhado por Friggi Madbeats na bateria – cujo trabalho rítmico estabeleceu fundações sísmicas –, Diego Sanctus e Darc Arantes nas guitarras, o grupo apresentou um setlist que funcionou como uma retrospectiva devastadora de sua trajetória. “Raising Hell”, extraída do recente Gods of Chaos, serviu como declaração de intenções, mas foi na exploração de seu catálogo histórico que a banda verdadeiramente brilhou.

Do seminal Kvlt Ov Dementia, “Sarcastic Devotion” e “Spiritual Cancer” emergiram como monumentos à brutalidade técnica, enquanto “Son of Light” e “Zodiac”, oriundas de Art of Killing, demonstraram a evolução compositiva do grupo. A performance de Jairo Vaz merece destaque especial – sua presença de palco magnética e controle vocal impecável estabeleceram o tom para uma noite que prometia transcender expectativas.

Se o Chaos Synopsis aqueceu os motores, o Hate polonês assumiu o controle com a força de quase três décadas de experiência. Adam “The First Sinner”, único membro fundador remanescente, liderou uma apresentação que funcionou como masterclass em death/black metal. O desafio era hercúleo: condensar uma discografia extensa em pouco mais de uma hora, mantendo a intensidade e a coerência narrativa.

A banda, completada por Domin (guitarra), Tiermes (baixo) e Nar-Sil (bateria), navegou por sua cronologia com a destreza de veteranos. O novo álbum Bellum Regiis foi representado pelas faixas-título e “The Wolf Queen”, mas foram os clássicos que incendiaram verdadeiramente o público. “Hex”, extraída do icônico Anaclasis: A Haunting Gospel of Malice & Hatred, emergiu como momento catártico, enquanto “Erebos” e “Rugia” reafirmaram a capacidade da banda de criar atmosferas simultaneamente épicas e devastadoras.

Tiermes merece menção especial por sua interação constante com o público, criando uma ponte entre a frieza técnica polonesa e o calor da audiência brasileira. Sua química com Adam no palco demonstrou que, mesmo após mudanças de formação, o Hate mantém sua essência intacta.

O encerramento ficou por conta do Vltimas, projeto que representa a convergência de duas forças titânicas do metal extremo: David Vincent (ex-Morbid Angel) e Rune “Blasphemer” Eriksen (Aura Noir, ex-Mayhem). Acompanhados por Type TWS (baixo), João Duarte (guitarra) e Pawel Jaroszewicz (bateria), o quinteto apresentou uma performance que funcionou como celebração e renovação simultâneas.

Com apenas dois álbuns em seu catálogo – Something Wicked Marches In (2019) e o recente Epic (2024) –, a banda não enfrentou dilemas de seleção, concentrando-se na execução impecável de composições que já se estabelecem como clássicos instantâneos. “Praevalidus” e “Total Destroy!” emergiram como hinos geracionais, enquanto “Mephisto Manifesto” e “Exercitus Irae” demonstraram a capacidade do grupo de criar narrativas épicas sem sacrificar a brutalidade.

A performance de David Vincent foi simplesmente magistral – sua presença cênica, desenvolvida ao longo de décadas, transformou cada música em ritual. Rune Eriksen, por sua vez, demonstrou por que é considerado um dos guitarristas mais influentes do black metal moderno, entregando riffs que oscilam entre a melodia sombria e a agressividade pura.

Este mini-festival na Burning House funcionou como lembrete poderoso de que o metal extremo brasileiro não apenas sobrevive, mas prospera ao lado de seus pares internacionais. A curadoria impecável reuniu três gerações e três abordagens distintas do gênero, criando uma experiência que transcendeu a mera apresentação musical.

Em tempos onde festivais gigantescos dominam o cenário, eventos como este reafirmam a importância da intimidade e da autenticidade. Cada banda teve espaço para respirar, para estabelecer sua identidade, para conectar-se genuinamente com uma audiência que compreende as nuances do que estava sendo apresentado.

A quinta-feira de 2 de outubro de 2024 entrará para a história como uma das noites mais significativas do metal extremo paulistano. Não apenas pela qualidade técnica das apresentações, mas pela comunhão espiritual entre artistas e público, pela celebração de uma cultura que resiste e se reinventa constantemente.

SETLIST CHAOS SYNOPSIS

RAISING HELL

ZODIAC

SARCASTIC DEVOTION

SON OF LIGHT

CHAOS SYNOPSIS

GODS UPON MANKIND

SERPENT OF THE NILE

SPIRITUAL CANCER

SETLIST HATE

Sovereign Sanctity

Erebos

The Wolf Queen

Bellum Regiis

Valley of Darkness

Luminous Horizon

INTERLUDIUM

Rugia

Iphigenia

Wrists

Resurrection Machine

Hex

SETLIST VLTIMAS

EPIC

Praevalidus

Invictus

Mephisto Manifesto

Exercitus Irae

Last Ones Alive Win Nothing

Scorcher

Nature’s Fangs

Total Destroy!

Monolilith

Miserere

Diabolus Est Sanguis

Galeria do show