Entrevistas

Fernanda Lira da Nervosa: “É obrigação do artista refletir sobre os tempos que a gente esta vivendo”

Fernanda Lira da Nervosa: “É obrigação do artista refletir sobre os tempos que a gente esta vivendo”

5 de novembro de 2019


Carlos Pupo/Headbangers News

Nervosa, power trio brasileiro de Thrash Metal. Formado por mulheres que vem ganhando notoriedade cada vez mais, apresentando um trabalho sólido e potente. Com shows cheios de energia e marcados por manifestações politicas, letras que falam sobre descriminação, religião e o cenário político, alcançaram o auge em 2019 com show no Rock in Rio 2019 e o convite para o Wacken Opan Air 2020. O site Headbangers News realizou uma entrevista exclusiva com a Nervosa durante a apresentação da banda no festival Minas no Front. Com a banda reunida, Fernanda Lira, vocalista e baixista tomou a frente e contou sobre a energia dos fãs, tocar em grandes festivais e a importância da luta feminista no cenário do Metal.

Jéssica Mar/Headbangers News

Queremos parabenizar vocês pela conquista de tocar o Rock in Rio e em breve, no Wacken Open Air. Como foi o show no rock in Rio? E a expectativa para o Wacken Open Air 2020? 

Ambos festivais sempre foram metas da banda e metas muito pessoais, a Fernanda Lira, headbanger de 15 anos sempre teve o sonho de tocar lá. Não foi bem uma surpresa, a gente sempre batalhou muito pra chegar lá algum dia, claro, sempre respeitando todos os passos e todos os lugares que tocamos até chegar lá. E quando chegou… a gente pensou “Mano, finalmente!”.

Tocar no Rock in Rio foi bem legal. Estar lá foi bem foda, uma estrutura daquele tamanho, é um reconhecimento pra banda, uma validação de todo trabalho que a gente vem fazendo. Eu já sabia que ia subir e virar um Satanás em cima do palco, antes de entrar, aquela galera gritando, a repórter falando “nunca vi o palco Sunset tão cheio desse jeito, é a primeira vez!”. Foi dando aquela expectativa e definitivamente foi um dos pontos altos da banda, na América do Sul, no Brasil. Bem brutal.

Agora o Wacken, se eu sobreviver e não infartar antes de subir no palco, vai ser maravilhoso também, esse pra mim era o clímax da carreira, eu sempre disse, quando eu chegar lá, posso dizer “Eu venci!”, porque é o lugar que todo headbanger quer tocar. Muito legal estar lá representando um sonho nosso, o trabalho da banda e claro, representando também a mulherada que toca e as bandas brasileiras. A gente precisa fazer cada vez mais as bandas brasileiras ocuparem este festivais. Então me sinto muito feliz porque não é uma vitória só minha, é uma vitória de todo mundo.

A base de fãs na América Latina é bem grande e apoia muito a banda. Quando vocês tocam fora daqui, sentem a energia dos fãs? Qual a diferença principal entre tocar no Brasil e no exterior?

Nós temos bastante fã na gringa também, conseguimos uma base de fãs bem sólida lá fora também, nos lugares que vamos tocando sempre tem uma energia maravilhosa. Pra mim o momento principal é estar no palco, sempre vai ser uma troca de energia bem bacana. Mas é diferente daqui do Brasil, sempre difere de um lugar para outro, cada lugar é especial por algum motivo. A América Latina é muito diferenciada, não existe outro lugar no mundo que eu tenha tocado que tem o tamanho, intensidade, paixão e entrega no show. Acho que esse é o diferencial, a entrega.

Acho que também está relacionado a realidade por dois motivos. Não que tocar na Europa não seja foda, é animal, o pessoal apoia muito, vem trocar ideia após o show, compra muito, eles tem a cultura do Metal, então a cena lá é forte. Você pisa na Europa e está respirando Metal porque o pessoal é muito fiel, apoia muito mesmo. É uma paixão muito grande assim no sentido de apoiar e viver o metal.

Mas voltando a falar da entrega, na América Latina tem isso, lá fora, em um período de verão, você pode ver a mesma banda tocando em 5 festivais diferentes, o pessoal está acostumado em poder escolher qual festival ver a banda e sabem que aquela banda sempre vai voltar. E na America Latina a gente não tem essa realidade, por mais que tenha melhorado, saber que de 2 em 2 anos a banda vem, ainda temos essa carência, esse é um dos motivos que eu acho que tem essa entrega tão grande, a gente vai tocar no México, tocar em Nicarágua é um loucura.

Em Honduras foi o show mais louco, da gente chegar de van e o pessoal ficar batendo na janela, eles tem essa carência de show, nunca sabem qual será a próxima vez que vão ver a banda. E também, nossa realidade em geral é sempre mais pesada, a gente se estressa mais no dia a dia, quando vamos em algum show, queremos extravasar, queremos nos divertir, gritar e essa diferença de realidade contribui pra gente ter essa paixão e entrega mais forte que os outros países do mundo. A carência e o estresse. Acho isso torna tudo especial.

Conhecida e conhecedora da cena do metal underground, Fernanda Lira mescla energia e agressividade em sua maneira de tocar e se portar no palco.

Jéssica Mar/Headbangers News

Conhecida e conhecedora da cena do metal underground, Fernanda Lira mescla energia e agressividade em sua maneira de tocar e se portar no palco.

Como vocês enxergam o atual cenário do Heavy Metal brasileiro? Podem dizer os prós e contras?

(muitos risos) Prós tem vários, as bandas brasileiras… 0 Brasil é um celeiro de banda maravilhosa, pra mim algumas das melhores bandas de metal estão no Brasil, onde você vai no país, tem uma cena fodida e uma banda foda, se eu fosse citar as minhas favoritas ficaria 10 minutos citando bandas, é bem legal. Os prós é a garra das bandas, a gente sabe que não é fácil ter banda no Brasil, não conseguimos nem comprar instrumento direito, é complicado. Isso que eu acho legal… E os contras… (mais risos) acho que não vou falar, pra não polemizar. As vezes esse papo de ‘não pode misturar metal com política’ me irrita um pouco, mas tudo bem, cada um acha o que quiser, enfim…

O último álbum “Downfall Of Mankind” é bem direto e com músicas bem curtas. Foi algo que aconteceu intencionalmente durante o processo de composição ou vocês “deixaram fluir” o que sentiam naquele momento?

A gente sempre deixa fluir, não queremos ficar engessando muito e deixamos fluir, e foi o mesmo nesse álbum. As vezes temos um direcionamento para uma música ou outra, tipo “Ah, vamos fazer uma mais lenta ou uma mais rápida”. Mas nunca nada programado “Ah, vamos ter 3 músicas curtas, 3 música lentas”, e tudo sempre muito fluído na composição.

Vocês se aproximaram muito do Thrash tradicional e do Death Metal neste trabalho, de que fonte buscaram inspiração? Quais são as principais influências do grupo?

Na real, seu fosse analisar, a gente se aproximou ainda mais do Death Metal, tem muito do cru do Thrash Metal, mas pegamos muito do Death Metal por causa do “cãozinho ali” (apontando para a Luana), ela vem da escola do metal extremo, a outra banda dela é de extremo Death Metal, então ela já tem essa veia Death Metal. E a gente sempre teve um pezinho, eu e a Prika na hora de compor sempre tivemos influências, sempre curtimos Death Metal e a Luana veio para ser a cereja do Death no bolo. E por isso eu acho que é um álbum mais Death Metal, muito por conta da Luana.

Luana Dametto, vem de uma leva de bateristas da forte cena de Metal Extremo do Rio Grande do Sul. No início de 2017 entrou para a Nervosa, onde permanece até hoje.

Carlos Pupo/Headbangers News

Luana Dametto, vem de uma leva de bateristas da forte cena de Metal Extremo do Rio Grande do Sul. No início de 2017 entrou para a Nervosa, onde permanece até hoje.

Prika Amaral, sempre chamou a atenção, por sua técnica incrível de palhetada extremamente rápida e cheia de cavalgadas em tempos complexos. Evidentemente se pode notar sua forte influência no thrash metal, estilo que ela diz ser especialista em tocar. Solos rápidos, uso de alavanca e microfonias, podem ser ouvidos em seus trabalhos.

Carlos Pupo/Headbangers News

Prika Amaral, sempre chamou a atenção, por sua técnica incrível de palhetada extremamente rápida e cheia de cavalgadas em tempos complexos. Evidentemente se pode notar sua forte influência no thrash metal, estilo que ela diz ser especialista em tocar. Solos rápidos, uso de alavanca e microfonias, podem ser ouvidos em seus trabalhos.

Posições políticas e ideológicas são importantes para compor uma boa letra?

Pra mim sim. Cada um faz o que quiser, mas eu acho curioso algumas pessoas falarem “Ah, eu não gosto que agora o Nervosa começou a misturar política no Metal”. Gente, “Time of Death” é uma letra política, “Invisible Opression” é uma letra política. Desde o começo o Thrash Metal é muito político, desde os anos 80 ele vem com essa veia política. Claro que a gente não foca só nisso, falamos de coisas do caráter do ser humano, a gente fala sobre várias coisas, mas a política sempre esteve lá e eu acho que quanto mais difícil esta a situação do país mais a gente vai falar sobre isso, porque a gente vive isso.

Sempre falei desde o começo que nossa música é nossa maior ferramenta de expressão, é a ferramenta que temos pra se expressar, a arte é uma forma de expressão, independente se for música, desenho… Você está se expressando. E nós usamos as nossas letras, e sempre usamos para falar sobre aquilo. A gente vê um monte de coisa coisa errada acontecendo, se ferra no dia a dia, e porque não falar sobre isso? Tem que por isso na nossa letra. E acho que muito do mal que temos é porque falta um pouco de consciência, de parar pra pensar, debater. As letras das músicas tem esse papel importante de plantar uma sementinha, não escrevo o que pensamos pra concordarem com a gente, não é uma ditadura, queremos que a pessoa debata, pare pra pensar, pra dar uma atenção para aquele assunto. Acho isso importante, sempre fizemos isso e vamos continuar fazendo. O que acontece no meu Instagram é outros quinhentos, um pouquinho mais radical (risos).

A gente sempre teve a letra politica, mas agora, né? Não pode falar. E isso me fez pensar muito. Acho curioso isso, eu penso bastante. Sempre fui super fã de uma fala da Nina Simone, que é uma das minhas divas. Tem essa fala no documentário dela: “Eu acho que é obrigação do artista refletir sobre os tempos que a gente esta vivendo”, faz parte da nossa arte expressar tudo aquilo que estamos vivendo e sempre fui fã dessa fala e me coloquei a questionar isso. Teve a palestra da Angela Davis [Em São Paulo, no mês passado], eu fui lá, sou super fã da historia e luta dessa mulher, e ela falou algo que me surpreendeu “Eu gostaria de agradecer os artistas e os músicos principalmente nesse período de luta, porque a música é uma arte extremamente importante pra luta social, os artistas tem voz e alcance pra um grande número de pessoas e além de ter essa luta social, tem a parte de que ficamos sensibilizados e a música faz a gente dar uma desbaratinada, ajuda a gente a relaxar e dar uma revigorada pra continuar lutando”. Se tem gente que não concorda, tranquilo, mas pra mim tem essa importância e vou continuar fazendo. Simples assim.

Durante o show no Festival Minas no Front, o Nervosa realizou discursos de igualdade e contra o sistema político..

Jéssica Mar/Headbangers News

Durante o show no Festival Minas no Front, o Nervosa realizou discursos de igualdade e contra o sistema político..

Por estarem conquistando seu merecido espaço, vocês ainda devem receber as mesmas perguntas por se tratar de um grupo exclusivamente feminino. Além de comentários desagradáveis, questões sobre vida pessoal e aparência devem sempre surgir. Como vocês lidam com este tipo de abordagem? Não deveria ser apenas sobre seu trabalho que deveríamos falar?


Eu lido de uma maneira didática, tenho até umas amigas feministas que não concordam com minha visão. Óbvio que me incomoda, óbvio que acho uma bosta quando ficam querendo saber… Digita no Google “Fernanda Lira” e vê as coisas que aparece. Tipo, altura… Qual a relevância disso? “Fernanda Lira, namorado”, bizarro. Isso me incomoda, e também as mensagens que a gente recebe tipo “Eu te pago por uma foto de bunda”, dei print e mostrei pro meu namorando, olha esse lixo. Receber e-mail “Luana, favor tocar sem sapato, sem meias” a gente recebe isso no e-mail da banda. Incomoda porque até as pessoas que trabalham com a gente falam que trabalham com bandas de homens e não tem umas bizarrices dessas.

Eu opto por lidar de maneira didática porque: Óbvio que tá cheio de idiota e babaca, mas a gente tem que lembrar que a maneira como a sociedade é hoje com essa coisa do patriarcado, essa coisa do machismo, esta enraizado há séculos, o machismo está enraizado há seculos, os homens estão acostumados a pensar que a mulher tem uma posição inferior há seculos, os homens acham que mulher tem que sexualizar, é um cultura enraizada há seculos, então… A gente não vai mudar de uma hora pra outra, eu acho que temos que ter muita paciência, porque muitos caras nem sabem que eles estão reproduzindo falas ou atitudes machistas, porque aquilo esta enraizado na nossa sociedade, você não pode cobrar uma atitude porque as vezes eles não reparam.

O Mano Brown dos Racionais MC’s deu uma entrevista falando “Cara, eu já fui machista pra caralho nas nossas letras, e hoje eu vejo de um outro posicionamento e vejo que não tem nada a ver as coisas que escrevi”, eu acho que é uma coisa que vai levar um tempo pra gente desenraizar, então a minha maneira é mostrar pro cara. As vezes o cara vem e é idiota, eu falo “Irmão, isso foi bem tosco”, então os caras ficam mal. Ai o cara vem e pede um beijo, eu falo “Cara, você pede beijo pro Kerry King quando tá no show?”, o cara responde “Porra, verdade, né?”, então, eu vim aqui pra tocar também. Eu tento sempre lidar dessa maneira e ensinar pro cara e se ele é reincidente eu falo “Cara, você é um idiota”, é assim que eu lido.

Jéssica Mar/Headbangers News

Já há algum novo trabalho sendo gravado? Podemos anunciar novidades para os fãs?

A gente está começando a compor com passos bem tranquilos, a gente quer fazer tudo com bastante calma dessa vez, mas com certeza logo mais vai ter um novo disco por aí.

 Apesar de serem jovens, vocês obtiveram um sucesso que têm inspirado outras bandas compostas exclusivamente por mulheres. Gostariam de deixar uma mensagem para as fãs que veem vocês como um espelho?

Um recado pra mulherada é: Mano, foda-se todo mundo e faça o que você acredita. A gente precisa um pouco mais dessa atitude, por muito tempo a gente foi polida, limada de tudo, de fazer o que a gente gostaria, muito oprimida e reprimida. E agora chegou a hora, mais do que nunca, a gente acredita em vocês! Nós acreditamos, é muito difícil às vezes ir contra esse jeito que a sociedade é. Mas acreditem em vocês mesmas, sigam os sonhos de vocês, sigam firme, ocupem mais espaço, a gente precisa cada vez mais de mulheres, pra uma banda de Thrash Metal feminina não ser mais uma surpresa e sim algo natural.

A gente precisa. Se inspirem, seja quem for de mina, e bora pro Front. A gente precisa de mais mulheres fazendo o que elas quiserem. A gente pode e deve, então, sigam firmes!

 

Renan Facciolo/Divulgação