Entrevistas

Sad Theory: “Acredito que escrever no idioma pátrio seja a melhor maneira de aproximar seu texto de uma verdadeira poesia”

Sad Theory: “Acredito que escrever no idioma pátrio seja a melhor maneira de aproximar seu texto de uma verdadeira poesia”

1 de setembro de 2022


O baixista Daniel Franco falou sobre o álbum Léxico Reflexivo Umbral

Divulgação

O baixista Daniel Franco falou sobre o álbum Léxico Reflexivo Umbral

A banda Sad Theory lançou, em 2021, o álbum Léxico Reflexivo Umbral, que obteve grande retorno entre os fãs e a imprensa especializada, chegando a concorrer em votações de melhores do ano em diversos veículos. Seguindo a divulgação do trabalho, o baixista Daniel Franco concedeu uma entrevista para o Headbangers News.

O Sad Theory foi estreou no final dos anos 1990 e desde então, foram sete álbuns de estúdio e inúmeros shows pelo Brasil. Dividiram palco com nomes importantes como W.A.S.P., Vader, Krisiun, Nevermore e Blaze, entre outros.

O novo álbum da banda de Curitiba tem onze músicas inéditas, apostando em um som brutal, que não abre mão da melodia e do lirismo profundo. O grupo é formado por Claudio “Guga” Rovel (vocal), Aly Fioren (guitarra), Daniel Franco (baixo) e Jeff Verdani (bateria).

O álbum Léxico Reflexivo Umbral, com temática inspirada na renomada série do Netflix, Black Mirror, está disponível nas principais plataformas digitais e em CD físico.

Por Gustavo Abiner

O Léxico Reflexivo Umbral é quase todo baseado na série Black Mirror, o que é bastante peculiar, então gostaria de saber em que momento a banda optou pela temática e de onde veio a ideia. Além disso, houve dúvidas sobre o potencial do tema durante as composições?

 

Era 2018, o Entropia Humana Final havia sido lançado poucos meses antes, em dezembro de 2017, e o nosso maestro Aly Fioren já estava com as lombrigas musicais pedindo mais! Lembro dele dizendo para pensarmos num tema, algo impactante, diferente do que já havíamos feito. E bem nessa época os episódios da quarta temporada de Black Mirror foram lançados, eu estava acompanhando estes e outros de temporadas passadas que não havia visto ainda. Muitos desses episódios me desciam como pedradas na alma. Nem pensei duas vezes e sugeri o tema na hora. A ideia, de maneira geral, foi bem aceita pela banda toda, exceto pelo Guga, que costuma ter uma abordagem mais “Não entendi direito, mas confio em vocês, vamos em frente!”. Depois que as letras e as músicas foram nascendo, o trabalho virou unanimidade, e hoje arrisco dizer que é o favorito até do próprio Guga.

 

O caráter distópico da obra também é fundamental, certo? Que outras referências de distopias foram utilizadas (se é que há outras) como base para as composições? Ou então, quais influenciaram vocês, no geral?

 

Por sua própria natureza antológica, Black Mirror já evoca esse tema da distopia de muitas maneiras diferentes. Dependendo do episódio você consegue lembrar, para ser breve, de Huxley, Orwell, Kafka, Asimov, ou de filmes como Matrix, Exterminador do Futuro, Mad Max, etc. Bastou, para as letras, seguir com a mesma toada desesperançosa, pessimista e resignada.

 

Já ouvi de certos compositores que tudo pode virar música, mas não sei se isso é verdade. Dito isso, pergunto: foi difícil transformar uma série de TV em Death Metal profundo? Qual foi o aspecto mais complicado no processo de criação do Léxico Reflexivo Umbral?

 

No caso da Black Mirror não houve dificuldade. Muito pelo contrário, houve, na minha opinião, uma sinergia impressionante entre a carga negativa dos temas e a sonoridade das músicas. Tudo fluiu muito bem, mesmo. Acredito que o grande empecilho tenha sido a pandemia, que atrasou um bocado os trabalhos.

 

Ainda sobre as composições, é comum tratamos música como uma forma de poesia, e isso é totalmente apropriado para a Sad Theory. A escrita de alguns poetas é um reflexo direto, até uma exacerbação, do que estão sentindo no momento, ao passo que outros, como explica Pessoa, imaginam ou até constroem esses sentimentos. Qual é o caso de vocês? Em outras palavras, razão ou emoção guiam a Sad Theory?

 

Acredito que, no meu caso pelo menos, há uma amálgama. Como disse antes, os episódios da série mexeram muito comigo, e me motivaram a escrever. O mal-estar provocado pelas reflexões que ia tendo após cada episódio certamente era um combustível poderoso, mas nem sempre isso é o suficiente para que um texto fique pronto para ser declamado ou, no nosso caso, cantado (berrado?). Muitas vezes é necessário mudar a perspectiva. Você bem citou Pessoa, e longe de mim almejar incorporar Alberto Caeiro ou Ricardo Reis, mas fiz o possível para, quando não possível encontrar o sentimento desejado em uma vivência minha, alguma memória de uma transferência de algum paciente ou confidente, algum exemplo marcante na literatura ou arte em geral, a razão estava lá, pronta para preencher alguma lacuna.

 

O título do álbum também chama muita atenção e, além de complexo, é ambíguo. Essas “camadas” de significado são sempre intencionais? O mesmo se dá para as letras das músicas, ou, em alguns ou muitos casos, a mensagem é direta e reta?

São intencionais! Quanto maior o número de sentidos possíveis, melhor. Quanto a mensagens, eu até tenho uma ideia clara quando escrevo, mas gosto de ser ambíguo, metafórico ou até mesmo vago na escolha de palavras. Eu prefiro que o leitor extraia do texto algo mais bruto e inconsciente num primeiro momento, mas que tenha a possibilidade de esmiuçar numa segunda olhada e reaproveitar o conteúdo sob outro prisma.

 

Sobre as músicas “Apis Metallica” e “Canis Metallicus”, basta traduzir os títulos para saber a que episódio se referem, mas por que estão em Latim? Há alguma conexão entre as duas faixas?

 

Como ambas referem-se a espécies “novas” de animais, foi uma ideia, de certa forma jocosa, de usar a nomenclatura científica que é em Latim, ou “latinizado”, para nomear o gênero e a espécie dos bichinhos. Se você conferir o disco físico, verá que fomos ainda mais longe, colocando o nome das específicas faixas destacados em itálico, e o nome da espécie (o segundo) começando em minúscula, como pede a nomenclatura. Nas plataformas digitais já não foi possível. Mas é só um detalhe.

 

Por falar em idiomas, uma pergunta um pouco mais leve. A banda compunha muito em Inglês no início e depois transitou para o Português. Há algum motivo para tal ou simplesmente aconteceu? Vocês pensam em tornar a compor em Inglês?

 

Quando entrei em 2015 e comecei a contribuir com letras, o álbum anterior, o Descrítica Patológica, já era 100% com letras em Português. Eu acredito que escrever no idioma pátrio seja a melhor maneira de aproximar seu texto de uma verdadeira poesia, pois é nele que está seu maior arsenal lírico, sua maior capacidade de domar a palavra ao seu favor. Ali a distância entre a sua alma e sua caneta é menor possível. Chegamos a cogitar um EP em inglês versões traduzidas de músicas do Léxico, visando o mercado internacional, mas por um motivo ou outro a ideia não prosseguiu.

 

O álbum conta com letras muito profundas e arranjos de complexidade equiparável. É possível dizer que a banda vive seu auge técnico? Ao que se deve essa evolução e para onde caminhar de modo a mantê-la?

 

Acredito que sim. Minha teoria é que vivemos um período de desconforto e estranheza, incerteza e desconfiança. Esse temor existencial se reflete na maneira como encaramos a arte, cada vez mais séria, soturna, fatalista, sem espaço para erros e sem tempo para bobagens. Caso eu esteja correto, continuaremos a evoluir.

 

O significado das letras é deixado, muitas vezes, para o ouvinte ou leitor, certo? Então creio que não seja tão produtivo pedir para que o expliquem em detalhe. Contudo, peço algo diferente, mas de viés similar: qual das letras, ou quais, melhor representa o que é a Sad Theory e o que a banda visa com elas? Qual faixa do Léxico Reflexivo Umbral melhor define o que é disco?

 

Acredito que o trio de letras que abre o disco, Absentia/Dementia, Endocárcere e Algofilia representa bem o estilo do disco e o momento da banda. Contam a derrocada de três indivíduos, por vias diferentes. Um tem certeza de que um dia sofrerá de uma doença neurodegenerativa que o incapacitará mas, tentando vencer seu destino, se autodestrói antes disso pela dependência de álcool. Outro sofre da síndrome do encarceramento (O Escafandro e a Borboleta) e aceita uma solução tecnológica vanguardista que sai pela culatra. O terceiro na mais empática das intenções, busca a compartilhar a dor dos seus pacientes para melhor entendê-los, e acaba se tornando uma espécie de predador parasita. Em suma, qual é o preço da vida eterna?

 

Por último, uma pergunta de curiosidade. Quais outras obras vocês acham que podem se tornar temas de músicas ou mesmo de um álbum todo, como Black Mirror? Não necessariamente que vocês pretendam lançar álbuns sobre elas, mas quais livros, filmes, séries, etc, dariam bons discos?

 

Por incrível que pareça isso é muito pessoal! Às vezes uma obra toca uma pessoa de uma maneira que não toca quase mais ninguém. Mas pra não deixar no vazio vou citar uma. Noite na Taverna, de Álvares de Azevedo. Daria um puta disco!